18/11/2012
Amizade, um amor que não vicia
Por Flávio Gikovate - Médico Psiquiatra - Revista Cláudia, dezembro de 1994.
"O
amor corresponde às sensações de paz, harmonia e completude que
sentimos ao lado de outra pessoa. É alguém especial, escolhido segundo
critérios de admiração (e outros que nem sempre compreendemos), e que se
transforma na figura substituta da mãe, nosso primeiro amor. Do amor
adulto esperamos coisas muito parecidas com as que esperávamos de nossa
mãe. O amado terá de estar presente nos momentos de aflição, nos dar
segurança, atenuar nosso desamparo. Em resumo, terá que preencher nosso
“buraco”.
A única
novidade é que a isso se acrescenta o sexo, nova fonte de inseguranças,
ciúmes e incertezas. Ou seja: a relação torna-se mais possessiva e
exclusivista do que era a da criança com a mãe. O vocabulário romântico é
indicativo disso: chamamos de “benzinho”, “lindinho” – e em tom de voz
idêntico ao que usamos para falar com crianças. Aliás, se os bebês
falassem, também diriam à mãe: “Você é maravilhosa”, “Sem você eu não
viveria” etc.
Ao
longo da vida, conhecemos várias pessoas. Com algumas nos encantamos;
com uma, esse encantamento se torna especial. É a eleita, a amada. Na
prática, será a encarregada de, com sua presença e atitudes, atenuar
nossa sensação de incompletude. Ela será a guardiã do meu “buraco”. E
eu, do dela. Quer se queira, quer não, esse caminho leva à dominação
recíproca – ainda que, na aparência, um seja o dominador e o outro, o
dominado. Por amar, as pessoas se julgam com direitos especiais sobre o
outro. O amor “autoriza” isso, pois o amado não pode deixar de acudir
quando o “buraco” exigir. Se vou trabalhar, não preciso de minha mulher.
Ao voltar para casa, porem, preciso dela lá, senão me sinto incompleto e
inquieto, exatamente como a criança que volta da escola e não encontra a
mãe.
Tudo
isso se resume numa palavra, que sempre ouço e invariavelmente me
irrita: cobrança! Por amar, as pessoas se sentem com direito de cobrar
tudo: presença, comportamentos, o que o amado deverá dizer, hora de
chegar em casa, de dormir, atividade sexual. Até gente sem tendência
autoritária se torna cobradora. Não acredito que haja gosto nesse
desgaste inútil de energia. Não se trata de prazer, mas de necessidade.
Na medida em que mandam, e são obedecidas, as pessoas se sentem com o
“buraco” preenchido. Qualquer desobediência, e lá está ele de volta. E
com acusações ao parceiro, responsável por isso. Aliás, o parceiro surge
como causador do “buraco”, como se este nunca tivesse existido e fosse
resultado da decepção sofrida! Na verdade, o amor existe por causa do
“buraco”, e não o contrário.
Para o
que se espera delas, até que as relações de amor são pouco tumultuadas.
Poderia ser pior, já que se tratam de dois adultos que se sentem
crianças, esperando proteção do parceiro, que está em igual condição.
Vamos
ver agora o que acontece com as relações de amizade as pessoas que nos
encantam, e não se transformam na amada, tornam-se nossas amigas.
Gostamos de sua presença, de conversar. Confiamos nelas e lhes
confidenciamos coisas que não diríamos à amada, por medo de perdê-la.
Partilhamos intimidades e sentimos tanto prazer em sua companhia quanto o
que vivenciamos no amor.
A
grande diferença, a meu ver, é que os amigos não existem para resolver o
meu desamparo: não é dever deles tapar meu “buraco”, embora sua simples
presença possa ajudar muito. Porém, como não me devem nada, nada posso
lhes cobrar. E o que acontece, então? Essas são as relações mais sadias
que conhecemos: intensas, duráveis, baseadas em confiança,
companheirismo e ajuda recíproca. A presença dos amigos nos encanta. Sua
ausência não nos mata de saudades. Só “vicia” a relação que existe para
preencher o meu “buraco”. A ausência amorosa dói como a falta do
cigarro para um viciado. A ausência do amigo é sentida, mas não dói."
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